Dia 6 - A T. e a minha memória prodigiosa


Há duas aulas atrás, tive de pedir à T. que mudasse de lugar, razão simples: falava demasiado e, como estava ao fundo da sala, o meu ouvido não podia, por incapacidade, maravilhar-se com a sua eloquência.
 Mal a aula terminou, e à socapa, anotei logo no meu caderno: “ aula de 5ª, mudar a T. de lugar”, que eu cá não sou pêra doce e tenho a competência cravada na pele, qual carrapato sequioso.
Chegado o dia da grande mudança, começo a aula por verificar se todos estavam presentes, não fosse alguma alminha, ovelha tresmalhada, perder um momento tão proveitoso. Ao percorrer toda a sala, o meu olhar cruza-se, de forma rápida, com o da T., que, entre a revolta e a admiração, pergunta, com a eloquência que lhe é própria: “Fogo, a pressora nunca se esquece de nada?? ”. “Esqueço-me de tudo” ia eu a responder, mas travei a tempo.
Satisfeita com a boa figura que acabara de fazer, pedi à T. que se sentasse mesmo junto à minha mesa. Fê-lo, mas não da forma leve que o verbo insinua, antes com gestos ligeiramente coléricos, acompanhados por um suave arrojar de cadeira e um delicado atirar dos seus pertences sobre a mesa.
Terminado o drama, dei início à aula, que, não me querendo gabar, correu verdadeiramente bem.
A T., essa, esteve muito participativa: fez todas as tarefas com brio e chamava-me com frequência para me mostrar o seu empenho.
A determinada altura, fez-me sinal para que me aproximasse. A sua expressão era misteriosa e senti um certo secretismo a pairar. Percebi que a coisa era séria. Agora era só entre mim e a T.

Fui deslizando, cautelosamente (nunca se sabe do que um aluno é capaz), leves gotas de suor assomavam-me no rosto, até que fiquei mesmo junto a ela. “Baixe-se lá pressora”. Baixei-me e a T. segredou-me: “Acho que aqui ‘tou mais atenta, acha pressora?”. 
Não me atrevi a contrariá-la. 
A bem da verdade, nem seria justa se o fizesse. 

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